segunda-feira, 29 de outubro de 2012

As lembranças de uma meia

Minha mania de contar um dia me levará ao desespero. Se é que não já aconteceu. Numa tarde qualquer, tomei conta de que estava contando quantos fios de cabelo branco pincelavam sobre a cabeça de certo moço que conhecera. Tenho certeza que eles são contáveis, não eram muitos, mas minha concentração logo se esvaiu para outra curiosidade.
            Era algo impactante ao olhar. Sua combinação de roupas, algo intrigante, mais que os fios de cabelo acinzentados pelo tempo. Poucos senhores gostam de camisetas goiaba, eu particularmente as adoro, deve ter sido isso. Seus sapatos, tênis melhor dizendo, reluziam um tom de verde-limão, tão chamativo. Não, não era a camisa sim o tênis, agora tenho certeza.
            Dois cadarços, dois pés, o verde reluzente, e as meias! Que meias? Eu não as via, estavam encobertas pela calça jeans. Nesse estalo de pensamento, fiquei desesperadamente ansiosa para saber, como eram as meias? Que cor teriam? Eram com desenhos? Será que tem desenhos? Ele não seria tão despropositado!
            Eu precisava descobrir como tal moço compunha suas vestimentas integralmente, naquele dia. Desde quando o conhecera, queria arrancar suas vestimentas, e sensorialmente compreender cada espaço de sua estrutura corpórea. Esse seria o momento ideal, eu teria a desculpa de querer saber como eram as suas meias. Brilhante motivo!
            E como manda o figurino, ficamos longas horas conversando naquela tarde. Os mais diversos assuntos, os mais banais possivelmente e outros nem tanto assim. Entretanto os meus pensamentos não saiam das meias. E sem mais, resolvemos levantar da mesa e ir à busca de descobrimentos. Não como os portugueses, ou melhor, como eles sim. A propósito, os portugueses e o relacionamento deles com as índias foram um dos nossos assuntos inúteis, talvez nem tanto, se pensarmos um bocadinho melhor. E como borboletas em véspera de tempestade, partimos.
            Depois de doces 15 minutos de fuga, arrancou-me as vestimentas, e com intensa fúria teve sua retribuição. Só assim pude ver as meias: eram pretas! Fiquei decepcionada com aquela cor. Não porque não goste de preto, mas porque a meu ver não combinariam com o estilo leve de uma camiseta goiaba e tênis verde como o limão. Mesmo assim as brincadeiras foram densas, intensas, e coloridas. Lembrou o tempo da meninice, onde qualquer sorriso é quase sem querer, e geralmente se transforma numa gargalhada, sem peso algum.
            Quando os raios de sol se esconderam, e a brincadeira já findava, não hesitei em perguntar: - Porque suas meias são pretas?  E açucaradamente ele respondeu: - Claro que não, são azuis marinho, veja melhor! E fitei os olhos sobre o tom.
Aquela resposta me transportara para o universo dos pensamentos novamente.  Percebi que sua multiplicidade de cores era como o espectro de luz visível. E o vento forte que trouxe às borboletas as levou embora novamente. Ainda quero saber quantos fios claros estão lá, um dia.
Foi quando parei de ler aquela velha história, naquele velho livro que ficava jogado sobre a poeira de uma estante que também é velha.
           

Rio de Janeiro, 29 de setembro de 2012.